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Estefani Panaino, Gabriel Caldeira e Matheus Menezes
29 de novembro de 2020

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 A ênfase de Macedo e congêneres é

o poder e o uso

do poder para benefício próprio.

- Ariovaldo Ramos

No livro Plano de Poder: Deus, os cristãos e a política, o bispo Edir Macedo, em parceria com o pastor da Igreja Universal Walcysneu Carlos de Oliveira, fala sobre a necessidade dos evangélicos ocuparem espaços na política. “Os cristãos não devem apenas discutir, mas principalmente procurar participar de modo a colaborar para a desenvoltura de uma boa política nacional, e, sobretudo, com o projeto de nação idealizado por Deus para o seu povo”, diz um trecho do segundo capítulo da obra. Ao clamarem pela participação ativa dos evangélicos por um “projeto de nação idealizado por Deus”, Macedo e Oliveira deixam clara a visão das igrejas e lideranças neopentecostais quanto à atuação na política partidária.

 

Como quase tudo que diz respeito ao movimento neopentecostal no Brasil, foi a Universal que capitaneou essas denominações em direção a uma tomada do espaço político institucional. Essa movimentação ocorreu primeiro no Congresso Nacional, quando já em 1986, ano da Assembleia Constituinte e menos de uma década após sua fundação, a igreja de Edir Macedo elegeu seu primeiro deputado federal: o bispo Roberto Augusto Lopes.

 

A jornalista e doutora em Comunicação Social Magali Cunha considera que a busca pela influência política é parte essencial das grandes instituições neopentecostais. Ela diz que, em um primeiro momento, os líderes evangélicos visavam a representação política como uma forma de garantir suas operações midiáticas por meio de concessões de rádio e televisão.

 

Mas com o sucesso das pretensões políticas da Universal, denominações de fora do movimento neopentecostal passaram a almejar um espaço nas Casas legislativas. Cunha cita que a Assembleia de Deus, maior igreja pentecostal brasileira, foi a mais influenciada por esse movimento da Universal. “A Universal sempre teve essa pauta [política] como sua razão de ser, junto com as mídias, o casamento política e mídias sempre esteve presente. E a Assembleia de Deus então capturou essa estratégia”, descreve.

Ainda que também tenha elegido deputados para o Congresso em 1986, a Assembleia de Deus tinha sua atuação na política travada por dissidências internas, como explica o vereador e presidente da Câmara dos Vereadores de Guarulhos, Professor Jesus (Republicanos-SP). Jesus é ligado à Assembleia e diz que alguns dos líderes mais conservadores da igreja entendiam que política era “coisa do Diabo”.

 

Para ele, as igrejas pentecostais perderam muito tempo com discussões internas e acabaram por atrasar suas entradas na política. “Enquanto evangélico você é um cidadão do município, do Estado, do País. Você não está à margem, você participa da sociedade, então você tem que participar politicamente também”, diz Jesus, reiterando a visão de Macedo exposta no livro Plano de Poder.

 

A partir da incursão da Universal e da Assembleia de Deus na política partidária, a história dos grupos evangélicos no Brasil mostra que as igrejas superaram os primeiros objetivos mais modestos - como as concessões de rádio e TV - ou eventuais discordâncias internas, e agora estão entre os grupos sociais que mais influenciam eleições e que melhor aglutinam representantes em torno de suas causas.

Câmara

Homens de Deus

Se antes da redemocratização os pentecostais acreditavam que a política era “coisa do Diabo”, o crescimento da representação política evangélica no Congresso Nacional demonstra que esse pensamento deixou de ser verdade para pastores e fiéis brasileiros.

 

O doutor em Ciências Políticas João Luis Binde explica que houve uma “mudança discursiva” das lideranças pentecostais. “Não que a política deixou de ser algo profano, mas agora eles vão combater o inimigo de dentro. E como se combate o inimigo de dentro? Elegendo homens de Deus”, explica.

 

A entrada de cada vez mais “homens de Deus” no Parlamento resulta na articulação dessas lideranças em torno de pautas sensíveis à parcela pentecostal e neopentecostal do eleitorado, como a defesa da chamada “família tradicional” - composta por marido e esposa - e a rejeição à legalização da união homoafetiva. É nesse contexto que é formada a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), em setembro de 2003.

 

Binde, cuja tese de doutorado explora a atuação da FPE desde a sua criação até 2014, afirma que os parlamentares evangélicos já se articulavam antes mesmo de 2003, e a criação da Frente surge como uma forma de pressionar por legislações que beneficiassem os templos evangélicos Brasil afora.

 

Hoje, a FPE tem cerca de 90 parlamentares evangélicos, dentre os quais ao menos 70 estão ligados às denominações pentecostais ou neopentecostais. Vale ressaltar que nem todos os membros da FPE são evangélicos, e por afinidade de pautas ou coligações políticas, católicos e cristãos de outras religiões também integram a Frente. No início da 56° legislatura (2019-2023), 195 deputados e 8 senadores faziam parte da FPE, segundo registro do site da Câmara dos Deputados.

Deputados federais eleitos por denominações

Para Binde, a predominância de pentecostais e neopentecostais na FPE espelha como os evangélicos se dividem na sociedade brasileira. Segundo dados do Censo de 2010, 60% dos cristãos protestantes no Brasil eram pentecostais ou neopentecostais. “Eles são os principais atores porque conseguiram captar de uma forma mais sistematizada a cultura midiática e transformar em capital humano, o que resulta em número maior de adeptos”, diz.

 

O vereador Professor Jesus entende que a maioria dos parlamentares evangélicos pentecostais e neopentecostais de fato representam os fiéis no País. Ele ainda diz que o político eleito com o voto evangélico deve “dar satisfação” a essa parcela do eleitorado. “Tudo o que eu vou fazer eu comungo com o meu pastor, discuto com ele. Acho que isso é muito importante, porque a igreja ajudou você a se eleger, então você tem que dar satisfação à igreja”, afirma o vereador.

 

Já o pastor Ariovaldo Ramos, líder da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, discorda que os parlamentares oriundos de denominações pentecostais e neopentecostais são representativos em relação a esses grupos religiosos. “O campo evangélico é fragmentado, não existe uma liderança central nem ninguém que possa dizer ser representante dos evangélicos, mesmo tendo membros de igrejas entre os participantes da FPE”, argumenta Ramos.

 

O pastor cita que a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito surge justamente para contrapor a visão “que se apresentava como hegemônica”, como ele descreve, das lideranças políticas pentecostais e neopentecostais no Congresso. Criada em 2016, a Frente é um movimento social de evangélicos contrários aos valores defendidos pelas maiores lideranças protestantes do País e está distribuída em núcleos regionais, que atuam com formação política e em protestos por todo o Brasil.

 

A maior parte desses valores rechaçados pelo movimento liderado por Ramos estão inseridos nas pautas de costumes defendidas pela FPE. Binde explica que apesar do alinhamento estar voltado sobretudo às questões morais, os parlamentares evangélicos também costumam votar de forma conjunta a favor de uma agenda inclinada ao liberalismo econômico defendido por partidos da direita e centro-direita. “Eles têm uma pauta muito mais ampla do que as questões religiosas.”, explica o pesquisador.

 

De acordo com Binde, a FPE evoluiu gradativamente em direção a um alinhamento com ideais distantes dos partidos progressistas ou de esquerda, e legendas como o PT e PSOL foram tendo cada vez menos evangélicos em seus quadros.

Lideranças políticas neopentecostais

Evangelismo de direita

O crescimento da parcela evangélica da população brasileira fez com que políticos de diferentes espectros ideológicos visassem este eleitor, que hoje integra cerca de 30% do eleitorado em todo território nacional, segundo dados do IBGE. Foram os políticos ligados aos partidos de direita, porém, que melhor dialogaram com os evangélicos, em relação que foi estreitada ainda mais no decorrer do século XXI.

 

Segundo o pastor Ariovaldo Ramos, a inclinação dos evangélicos pentecostais à direita se intensifica nos tempos do comunismo soviético, visto pelas igrejas estadunidenses fundadoras do movimento pentecostal como um sistema político que perseguia cristãos evangélicos. “A igreja estadunidense semeou na consciência da igreja evangélica essa centralização da perseguição, ou seja, vendeu que os evangélicos estavam sendo perseguidos”, explica Ramos.

 

Esse pensamento vai influenciar lideranças brasileiras durante o período da Ditadura Militar e pavimentar o caminho para que as igrejas pentecostais e seus fiéis se identifiquem com ideais da direita. Em contexto mais recente, houve uma tentativa de aproximar a massa de evangélicos pentecostais ao ideário de esquerda por meio dos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), segundo Ramos. Esta tentativa, porém, caiu por terra à medida em que a esquerda se concentrou em pautas sensíveis à população evangélica.

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Hoje não se

pode pensar política no

Brasil sem pensar no público evangélico.

- João Luis Binde

Entre as razões para o distanciamento da igreja com a esquerda e a aliança definitiva com a direita, Ramos cita o Projeto de Lei Complementar (PLP) 122/2006, apresentado pela então deputada federal Iara Bernardi (PT), que criminalizava a homofobia no País. 

 

Apesar de o projeto original não citar nem atingir especificamente qualquer grupo religioso, os cristãos de todo o Brasil, especialmente os evangélicos, entenderam que o PLP funcionaria para restringir a liberdade de culto e de expressão dos fiéis. A relatora da pauta era a ex-senadora Marta Suplicy (PT), que tentou, em vão, costurar um acordo com entidades religiosas para aprovar o projeto.

 

“Embora o PLP fosse absolutamente justo na sua proposição, a Marta e os seus assessores cometeram um equívoco, pois eles resvalaram na questão religiosa e o projeto acabou sendo rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional”, explica Ramos. Ele afirma que o PLP 122/06 foi também responsável por colocar “uma pulga atrás da orelha” de líderes pentecostais e neopentecostais, que passaram a entender que as pautas relacionadas às populações LGBTQ+ eram contrárias ao livre exercício das religiões.

A agenda de proteção da família tradicional é recorrente nos meios evangélicos conservadores. Ramos nota que, com o avanço das demandas LGBTQ+, a população evangélica passou a temer uma certa “erotização das crianças” por meio de propostas de discussões de gênero e sexualidade nas escolas. “Isso tudo mexeu com a igreja evangélica por causa do medo da perseguição religiosa e da erotização, o que acabou atendendo aos anseios da elite da direita”, diz o pastor.

Cristofobia

Em junho de 2015, durante a realização da 19ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, a performance da travesti Viviany Beleboni gerou grande aversão em grupos evangélicos. A fim de encenar contra as opressões que a população LGBTQ+ vive cotidianamente, Viviany desfilou crucificada com uma coroa de espinhos em um trio elétrico pela Avenida Paulista.

 

Na época, o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), ligado à igreja neopentecostal Catedral do Avivamento, publicou um vídeo em suas redes sociais criticando o protesto da ativista, classificando-o como uma manifestação cristofóbica.

 

Essa não foi a primeira vez que o termo “cristofobia” foi empenhado por políticos evangélicos - o próprio Feliciano já o tinha usado dois anos antes. Foi neste momento, porém, que diversas lideranças políticas passaram a se apropriar deste neologismo para indicar que há uma perseguição sistematizada contra cristãos no Brasil.

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Protesto de parlamentares evangélicos contra uso de símbolos religiosos na Parada LGBT, em 2015.
Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

O imaginário do cristão perseguido pode ser remontado, por exemplo, à prisão de Edir Macedo em 1992 por charlatanismo, estelionato e curandeirismo. O bispo relata em sua autobiografia Nada a Perder que as acusações eram injustas e frutos de uma conspiração para derrubá-lo. O cientista político João Luis Binde acredita que esse imaginário do evangélico perseguido pode ser facilmente instrumentalizado para isentar os líderes neopentecostais de qualquer acusação. “Você muda o foco e diz que está sendo perseguido por ser um homem de Deus. É um trunfo que outros políticos não possuem”, explica o pesquisador.

 

Para o vereador Professor Jesus, há preconceito contra cristãos no Brasil, assim como há contra negros e homossexuais. “Acredito que em uma escala menor existe sim”, diz. Jesus argumenta que a perseguição contra cristãos ocorre também em outras partes do mundo, em regiões menos tolerantes à diversidade de crenças.

 

Já o pastor Ariovaldo Ramos entende que não se pode defender a ideia de que haja preconceito sistematizado contra cristãos em qualquer parte do mundo, uma vez que esse grupo religioso nunca foi particularmente perseguido na história recente. Ramos também argumenta que a ideia de que cristãos são perseguidos em um País de maioria católica e evangélica carrega ainda menos sentido. “Os símbolos cristãos estão em todos os lados: nas repartições públicas, a fé cristã é evocada nos palanques políticos. Não tem cristofobia no Brasil, nunca teve, ninguém foi perseguido por servir a Cristo”, afirma.

 

De qualquer forma, o debate sobre cristofobia chegou à Organização das Nações Unidas (ONU) justamente pelo discurso do líder de um país de maioria cristã. Em setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) abriu a Assembleia-Geral da ONU com um discurso que terminou com um apelo à comunidade internacional pelo combate da cristofobia pelo mundo. “A liberdade é o bem maior da humanidade. Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia", disse o presidente brasileiro na ocasião.

Bolsonaro e o apoio evangélico

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Igreja é muito importante

para o governo. 

Ela foi o diferencial

para eleger Bolsonaro.


-  Professor Jesus
 

Em outubro de 2018, os então candidatos Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) disputavam o segundo turno nas eleições presidenciais. Alinhado às pautas conservadoras e com amplo apoio de lideranças neopentecostais, Bolsonaro concentrou 69% das intenções de voto entre evangélicos em todo o Brasil, segundo pesquisa Datafolha divulgada no dia 25 daquele mês, três dias antes do segundo turno do pleito.

Antes da disputa se acirrar entre Bolsonaro e Haddad, durante a campanha eleitoral as lideranças evangélicas apoiavam a candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB). Porém, com a popularidade de Bolsonaro crescendo nas pesquisas, o apoio migrou para o candidato da extrema-direita. Com a plataforma anti-esquerda e conservadora de Bolsonaro, a mudança ocorreu de forma natural dentro dos templos.

 

Para compensar o apoio decisivo em 2018, o presidente Bolsonaro distribuiu benesses às igrejas evangélicas em seus primeiros anos de governo, como aconteceu ao acenar pelo perdão da dívida de igrejas junto à Receita Federal e por mais isenções fiscais a estas instituições. A Internacional da Graça de Deus e a Mundial figuram no topo das denominações evangélicas que mais devem em impostos e multas à Receita Federal - R$ 139,7 milhões e R$ 85,9 milhões, respectivamente.

A aliança entre Bolsonaro e evangélicos também rendeu à Universal do Reino de Deus fatia maior de verba com publicidade, distribuída pela Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do governo. Nos anos anteriores à posse de Bolsonaro, a TV Globo era a que mais recebia dinheiro da Secom, por ser a emissora com maior audiência. A partir de 2019, porém, a Record TV de Edir Macedo ultrapassou a Globo e se tornou o veículo televisivo com a maior verba do governo, mesmo sem ultrapassar a audiência da emissora carioca.

Distribuição de verba de publicidade às emissoras de TV

O medo inventado de que a esquerda incentivaria a pedofilia e a perseguição às igrejas evangélicas foi apropriado por Bolsonaro, percebe o pastor Ariovaldo Ramos. “Quando chega a eleição de 2018, Bolsonaro está preparado para atender esse clamor evangélico que foi fabricado”, diz. Na campanha em 2018, por exemplo, o atual presidente difundiu notícias falsas sobre mamadeiras eróticas que teriam sido distribuídas pelo Partido dos Trabalhadores, e classificou como “kit gay” o programa Escola sem Homofobia, criado em 2011 por Fernando Haddad quando o petista comandava o Ministério da Educação (MEC). Fortemente ligados à defesa da família tradicional, essas pautas influenciaram o voto dos evangélicos. “Boa parte da igreja evangélica acreditou que era preciso tomar o poder porque o Diabo se escondia atrás das estruturas”, afirma Ramos, se referindo a uma espécie de batalha espiritual no campo político.

Segundo o cientista político João Luis Binde, não é possível “pensar o governo Bolsonaro sem a FPE” e o apoio dos evangélicos. Ele elenca situações em que o presidente evidencia a importância deste grupo social para a sua gestão: “diz muito o fato de Bolsonaro se batizar no Rio Jordão depois da onda neopentecostal e pentecostal ter adentrado ao poder, almoçar com parlamentares da FPE, dizer que vai colocar um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal. Tudo isso aponta para uma afinidade muito grande e indica que são pessoas chaves para as quais ele acena”.

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