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Estefani Panaino, Gabriel Caldeira e Matheus Menezes
29 de novembro de 2020

Do alto do púlpito, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, lê o primeiro capítulo do livro de Jó para uma plateia de milhares de fiéis na Catedral da Fé de Santo Amaro, em São Paulo. O ensinamento do dia é a prosperidade: o pastor conta que a riqueza de Jó é fruto das bênçãos de Deus, que deseja muita abundância na vida de seus filhos. Ao final da pregação, o bispo diz: “é por isso que às segundas nós trabalhamos para que as pessoas sejam abençoadas economicamente”.

 

A fala de Macedo, em um culto de 2014, exemplifica a prática religiosa das chamadas igrejas evangélicas neopentecostais, movimento do qual a Universal é pioneira no Brasil. Ao incorporar oficialmente as conquistas materiais ao leque de bênçãos divinas, essas denominações provocaram uma mudança profunda no modo de pensar de lideranças evangélicas e atraíram milhões de fiéis, que viram nelas uma saída palpável para os seus problemas cotidianos.

 

Mas antes deste movimento iniciado pela Universal alterar o cenário evangélico, a história do pentecostalismo no Brasil já tinha cerca de sete décadas de vida, e boa parte das experiências pentecostais partilham desde então de algumas características fundamentais. A jornalista e doutora em Comunicação Social Magali Cunha, que estuda a religião evangélica há duas décadas, diz que os grupos pentecostais que chegaram no País têm atuação muito ligada a expressões da cultura brasileira, o que em parte explica o sucesso dessa religião.

 

Cunha explica que a relação estreita com elementos que têm expressão na cultura brasileira gera identificação especialmente entre os mais pobres. “Tanto é que os pentecostalismos vão crescer nas periferias, no interior e durante o processo de urbanização a partir dos anos 1950”, complementa, frisando que o cenário pentecostal brasileiro é plural.

A pesquisadora aponta que as igrejas pentecostais se apoiam na espontaneidade em seus cultos, com uso de música e instrumentos populares, que são de fácil assimilação. Cunha destaca a diferença dessa prática com as da Igreja Católica tradicional, que dá ênfase para a sua doutrina caracterizada por rituais e formalidades mais rígidas, sem tanta aderência às demandas da população brasileira dos tempos atuais.

 

Não é a toa que - puxada pelo segmento pentecostal - a religião evangélica é a que mais cresce no País há pelo menos 30 anos e deve desbancar os católicos nas próximas duas décadas como religião predominante dos brasileiros, segundo projeção do doutor e pesquisador em demografia José Eustáquio. Ele explica que esse crescimento se intensificou a partir de meados dos anos 1980, e foi primeiro registrado pelo Censo demográfico de 1991, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

Eustáquio diz que os dados do IBGE mostram uma queda em torno de 1% por década do número de brasileiros católicos entre 1890 e 1980, passando de 99% para 89% da população. Já entre o Censo de 1991 até o levantamento de 2010, os católicos caíram de 83% para 64% dos fiéis, o que confere, em média, uma diminuição de 1% ao ano da quantidade de seguidores do Papa no Brasil.

Católicos x Evangélicos

“O fenômeno de crescimento dos evangélicos não é por conta das igrejas tradicionais, e sim das pentecostais e neopentecostais, que tem uma política de atrair fiéis muito contundente”, explica Eustáquio. Ele e Cunha concordam que faz parte dessa política a noção de que o fiel pode, por meio de sua fé, conquistar prosperidade financeira e felicidade. Essa ideia é o ponto central da chamada Teologia da Prosperidade, prática iniciada pelas igrejas neopentecostais e evidenciada na pregação do bispo Edir Macedo que inicia esta reportagem.

 

Além da própria Universal de Macedo, a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus estão entre as grandes instituições religiosas do movimento neopentecostal, iniciado na segunda metade dos anos 1970 e que decolou na década seguinte. O começo do sucesso das igrejas neopentecostais coincide justamente com o início da ascensão evangélica apontada por Eustáquio.

 

Ainda que a Assembleia de Deus, uma pentecostal tradicional, tenha sido a denominação evangélica que mais ganhou fiéis desde os anos 1980, a influência do neopentecostalismo sobre toda a esfera protestante é notória. E a Teologia da Prosperidade, base da prática religiosa dessas igrejas, tem grande parte nisso.

A Teologia da Prosperidade

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A Teologia da Prosperidade é uma coisa que

dá sentido a grupos  religiosos que estão inteiramente imersos na lógica capitalista.


- Magali Cunha

A mistura de dinheiro com religião pode ser vista como um tabu no cristianismo, mas essa é uma relação bastante naturalizada entre os neopentecostais. Como a maioria das igrejas, as neopentecostais também pedem doações aos membros, mas elas possuem um elemento autêntico: a Teologia da Prosperidade, que entende que aqueles que são fiéis, corretos, tementes e realizam contribuições para Deus são recompensados com prosperidade financeira, felicidade e saúde. 

 

Na prática esse ensinamento é passado no dia a dia dos cultos e às segundas-feiras, na Universal, acontece o Congresso para o Sucesso, uma pregação voltada a conselhos financeiros. A dona de casa Rita Araujo, 71, teve uma criação católica, mas passou a frequentar igrejas evangélicas. Ela faz parte da Universal há oito anos e vai à igreja quase todos os dias, inclusive às segundas. “No dia do financeiro, se você tem um problema, você faz uma campanha, se você quer arrumar um emprego, você leva o currículo para o pastor ungir”. 

 

“A  religião não está desconectada do mundo, ela tem conexões com os contextos. Dos anos 1990 pra cá a gente vê um triunfo do capitalismo globalizado, da lógica de mercado. Tudo funcionando em torno da economia e das finanças, da questão financeira, dos desejos de consumo”, diz Cunha. A especialista relaciona a Teologia da Prosperidade com o alinhamento das neopentecostais à lógica capitalista e conta que é possível comparar a estrutura dessas igrejas com empresas. Ela alerta, porém, que trata-se de uma análise que faz sentido apenas para as grandes denominações do segmento.

O apelo cultural ajuda na penetração do segmento na sociedade, a presença das igrejas na periferia abre as portas para mais membros e a Teologia das Prosperidade dá esperanças para fiéis que passam por problemas econômicos. É com essa receita que as neopentecostais conseguem espaço entre alguns grupos marginalizados. Cunha esclarece que há um “apelo muito grande para a população mais sofrida, que está em busca de solução para suas vidas. [Por isso, notamos a presença de pessoas de] baixa renda, mulheres e a população negra”.

Perfil dos evangélicos

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O pastor Ariovaldo Ramos, líder da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, é um crítico da Teologia da Prosperidade. “A pregação da Prosperidade é anticristã, ela é uma pregação que nasce nos Estados Unidos para dar aval teológico ao capitalismo. Basicamente a Teologia da Prosperidade soma à ressurreição de Cristo a necessidade da contribuição para a redenção do fiel”, diz. Críticas a esse respeito vindas das denominações tradicionais evangélicas não são incomuns.

 

O pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, ala assembleiana mais ligada a práticas neopentecostais, rebate essa ideia em vídeo de 2017. Ele enumera alguns trechos da Bíblia que justificam, na sua visão, a Teologia da Prosperidade, e afirma que é uma afronta dizer que aqueles que acreditam nela são hereges. Malafaia complementa dizendo que “os que combatem [a Teologia da Prosperidade] não moram em favela e não andam a pé”.

 

Ao dizer isso, Malafaia acena para a maior parcela a qual pertencem os fiéis neopentecostais: pobres que moram em grandes centros urbanos. Rita reitera a fala do pastor ao concordar que a pregação da Prosperidade, aliada aos dízimos, traz retornos financeiros. Ela comenta uma dívida que sua família tinha, de R$ 300 mil junto a um banco, e que, após negociações e campanhas na igreja, passou a ser de R$ 30 mil.

 

“[São] Muitas bênçãos de Deus. Eu não sei nem te explicar como, mas a gente alcança as bênçãos. Não vou dizer que lá atrás eu não fui abençoada também, mas era diferente”, compara Rita, ao relembrar de seu período como católica.

Oratória neopentecostal

O ex-pastor da Bola de Neve Tiago Plana também não concorda com a forma de pregação das igrejas neopentecostais. Ele chama a Teologia da Prosperidade de “pregação da autoajuda” e diz que a prática provoca frustração entre alguns fiéis que não ascendem economicamente como outros. Plana, inclusive, saiu da Bola de Neve ao deixar de se identificar com a liturgia neopentecostal.

 

Em muitas dessas igrejas, a leitura das Escrituras não é o foco. Nessas denominações, os versículos bíblicos são usados por pastores e bispos como uma espécie de autoajuda, aponta Alexandre Bandeira, doutor em Ciências da Comunicação. O pesquisador em mídia e religião analisa que a linguagem empregada pelas grandes neopentecostais está direcionada especialmente à melhora da vida particular do fiel no emprego, nos relacionamentos, na família, etc. “Eles têm uma receita para cada problema teu”, diz.

André Betini, 44, fez parte da Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra por cerca de 20 anos. Ele deixou de frequentar igrejas neopentecostais pois passou a se incomodar com os cultos voltados para o financeiro e as pregações sem aprofundamento bíblico. “Eles pinçam versículos da Bíblia para trabalhar a visão que eles têm”, diz. Hoje, ele se identifica com a linha de igrejas reformadas, em que utilizam mais fundamentos pregados na Bíblia, em sua opinião.

#1 - Culto e Adoração
00:00 / 16:20
#2 - O papel social da Igreja
00:00 / 14:21
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Acolhimento e trabalho social

A estudante de Nutrição Gerlany Vitória, 20, conta como foi recebida na Universal, igreja da qual faz parte há cinco anos: “eles não veem cor, idade e nem a forma que você se veste. Eu estava precisando de ajuda. Da forma que eu cheguei me abraçaram”. Seu relato se assemelha a de outros fiéis neopentecostais, que também se sentiram acolhidos na denominação.

 

Rita e Gerlany fazem parte da mesma igreja, a diferença é que uma está em São Paulo e a outra em Pernambuco, mas a experiência é parecida. A dona de casa foi bem recebida na Universal e dá destaque à postura dos pastores: “a gente pega um carinho por eles e eles por nós. O pastor conversa, se você falta ele quer saber o porquê...", conta.

 

“As pessoas têm muito preconceito na religião. E na Bola de Neve eu não vejo isso”, relata Vitória Marinho, 21. A estudante de Jornalismo frequenta a Bola de Neve, umas das denominações que se popularizaram a partir da década de 2000 atraindo principalmente um público mais jovem. Vitória se recorda da primeira vez que visitou a sede da igreja no bairro da Lapa, em São Paulo, e encontrou uma grande diversidade de grupos sociais. “Tinham travestis, prostitutas, gays, pessoas de todos os tipos de gênero, cor, idade, tamanho, vestidos da forma que queriam estar vestidos. Você é aceito”, descreve.

O pertencimento e os vínculos sociais são elementos essenciais desses grupos evangélicos, avalia Alexandre Bandeira. O pesquisador associa essa característica com o forte papel social que as igrejas desempenham nas periferias, preenchendo muitas vezes o espaço que o Estado não cumpre.

 

A Universal faz parte das igrejas que estimulam as ações sociais. Os trabalhos geralmente envolvem doações de itens básicos e amparo espiritual e são realizados por obreiros como a Gerlany. Ela contribui para o programa Universal Socioeducativo, que ampara menores infratores, e a Evangelização, atividade com várias frentes que leva a palavra de Deus a hospitais, cemitérios, estradas, etc.

 

A Bola de Neve, além de projetos sociais, oferece cursos gratuitos e atividades de lazer. O objetivo é alcançar mais fiéis por meio de ações diversas. Wesley Duarte, 26, frequenta a Bola há sete anos e hoje é líder de célula na denominação. Ele conta que a igreja fornece até aulas de Jiu-Jitsu e “no começo ou final do treino, é pregada a palavra”. Rebecca Carvalho, 24, membro da mesma igreja do Wesley, nota que eles tentam fazer um apelo para os jovens: “já fizemos a Batucada Abençoada, que trouxe a evangelização por meio do Carnaval”, conta.
 

Já a pastora Bianca Pagliarin é coach, diretora artística da Rádio Feliz FM e está à frente do Ministério de Mulheres na Comunidade Cristã Paz e Vida há cinco anos. As ações que conduz estão relacionadas à saúde psicológica da comunidade. Um de seus projetos instrui pastores e pastoras para que eles possam identificar sinais de abuso em crianças por meio de seu comportamento. Outra frente de seu trabalho está ligada ao apoio de mulheres que carregam culpa e problemas de autoestima por terem sofrido violência psicológica ou física no passado. “Meu papel lá é motivá-las, apoiar os projetos que elas trazem e conversar”.

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A Bola de Neve parece a Avenida Paulista: você anda do jeito

que quer.

Isso começou a atrair pessoas que não gostavam do estereótipo de crente.


- Tiago Plana

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